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quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Amore Multicolore


(Pérola, Pedra-do-Sol, Opalite, Jaspe Dálmata, Olho-de-gato, Amazonite, Ágata, Ametista e Quartzo Rosa)

Que ofício debruçado: polir a jóia extenuante,
multiplicar o mundo face
mais face.
Fazer da imagem uma consciência vária.
O fogo dessa pedra cada vez mais
alerta, preciosa, convulsa, funda, abrasadora.
Trabalhas nela até às unhas.
Trabalhas na atenção aterrada, com que louvor
de obra, irrealmente. As estações da noite, os sistemas
nervosos das avencas do alto,
as plumagens.
E os dias compactos como o leite
guardado nos jarros, ou largos
das sedas estendidas. Passam
unidos todos uns aos outros
nos cotovelos. E lapidas, lapidas. Arrancas-lhe a força
eléctrica. Que a ti mesmo,
nas mãos e na cabeça, no escuro, no levantamento
do ar no sono, te faz desentranhadamente
límpido. O relâmpago
do âmago. Queima-te a vista. E na cegueira fica apenas,
atroz,
o coração da jóia.



Herberto Helder

Lava & Gelo


(Madre-pérola, Obsidiana-floco-de-neve, Opalite, Jaspe Vermelho, Jaspe Preto, Lápis-lazúli, Aventurina Azul, Coral e Magnesite)

Estátuas irrompendo da terra, que tumulto absorvem?
Os cabelos resplandecem.
Os símbolos que celebram dão à pedra uma tensão, um
desenvolvimento, uma aura.
Em cada uma delas eu abraço uma estrela.
Abraço-a ponta a ponta das mãos
numa só massa transpirada.
Arrebata-me, calcina-me.
O chão é a potência astronómica.
No escuro do ar rebentam floras. A carne única
vibra como uma vara
de baixo
para cima.



Herberto Helder

Inse(c)to de Quíron


(Ametista, Olho-de-tigre, Lápis-lazúli, Jaspe Amarelo, Jaspe-dálmata, Rodonite, Cristal-quartzo, Madre-pérola e Pérola)


Insectos nucleares, cor de púrpura, mortais, saídos reluzindo
de sob uma pedra onde
de que alucinação. Entrando no sono. Devoram uma zona rude e incandescente
não sei se da cabeça.
Uma razão da melancolia, louca
de sangue. Devoram misteriosamente artérias, neurónios, células
deste aparelho de terror e pensamento
onde se apoia a estrela
talhada. E ficam sulfurosos
da substância do sonho. Leves quando arrancam
uma rosa de entre as meninges. Mas as moléculas das imagens
fazem-nos ferozes,
radioactivos.
Minam-me o pesadelo, saem ruivos, ébrios de um ouro
insalubre. E o mundo inteiro cede
ao peso que trazem à membrana entre as coisas
simples e o pavor das coisas
que crepitam.



Herberto Helder

domingo, 29 de junho de 2008

AS MUSAS CEGAS

"(…)

V

Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
- E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.

Esta linguagem era o disposto verão das musas,
o meu único verão.
A profundidade das águas onde uma mulher
mergulha os dedos, e morre.
Onde ela ressuscita indefinidamente.
- Porque uma mulher toma-me
em suas mãos livres e faz de mim
um dardo que atira. - Sou amado,
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto-
e doado às coisas mínimas.

Na treva de uma carne batida como um búzio
pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.

Essa mulher cercou-me com as duas mãos.
Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue,
acendo-lhe as falangetas,
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras.
Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente.
Sou eterno, amado, análogo.
Destruo as coisas.

Toda a água descendo é fria, fria.
Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes
sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trémulas
da carne,
tudo o que é húmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo
- não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.

E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo
lírio a lírio todo o sangue interior,
e a vida que se toca de uma escoada
recordação.

Toda a juventude é vingativa.
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.
Um dia acorda com toda a ciência, e canta
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe
pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito

nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem,
e atira-a para o espaço.
Sou amado. - E é uma pedra celeste.

Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia
de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.
Amam-me; multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno."



Herberto Helder